Este texto foi produzido para uma palestra que eu ministrei em uma roda de conversa entre várias figuras interessantes da humanização do parto aqui em Brasília. O evento se chamava Rosa dos Ventres, e foi uma honra participar junto com pessoas queridas como Paloma Terra, Carla Daher, Dawn Marie Chaloux, Adèle Valarini... Foi um ótimo momento!

Minha
ideia é apresentar alguns pensamentos para que nós possamos construir juntos a
relação entre parto e sacralidade. Primeiramente, a minha proposta neste texto não
é falar de religião. Aliás, a minha proposta é não falar de religião. A palavra
“sagrado” colocada no meu tema, fala sobre uma forma de experiência
desvinculada de instituições e dogmas, e que diz respeito à experiência humana
de maneira geral.
Sobre
isso podemos falar, tendo em mente que cada um tem as suas experiências, e são
sempre diferentes do outro. Quando eu falo de parto sagrado, eu não vou falar
da minha experiência de parto, por que não tive, nem da sua, por que não
conheço. Mas vou tentar, conversar sobre abrir uma possibilidade de vivenciar o
parto como uma experiência com estas características, do sagrado enquanto
estado mental, como um sentimento, uma experiência interna e individual.
O
Sagrado é um estado que não pode ser explicado nem simbolizado, só pode ser
experienciado. O mais próximo que podemos chegar de falar sobre o sagrado é
citando sensações que são reflexo deste encontro, palavras como solenidade,
arrepio, temor, assombro, sobrenatural. É uma experiência que diz para aquele
que a vivencia sobre o divino, sobre ser e poder, sobre a revelação da verdade.
Sendo assim pode ser uma experiência que surge tanto de um ritual da sua fé,
quanto de coisas muito simples. Até mesmo do parto.
Em
segundo lugar, antes de entrarmos no tema propriamente dito, eu gostaria de
lembrar a importância do corpo para o tipo de experiência da qual estamos
falando. O pensamento sobre o qual está a nossa forma de funcionar socialmente
divide o homem entre mente e corpo. Para cada parte dessas existe um
especialista: a mente é para psicólogos, filósofos, ciência, enquanto o corpo é
para a medicina (e seus “derivados”). Assim, temos a impressão
de que nós não precisamos nos preocupar com nada disso, podemos viver
trabalhando e consumindo, certos de que tem alguém que vai resolver quando
alguma dessas coisas apresentar um problema. Mas essa é uma ilusão, e quando
tentamos viver com base nela geralmente perde-se a qualidade da experiência
humana, principalmente espiritual.
Quando ousamos criticar e transpor a antítese mente e corpo,
percebemos que o corpo não é o lugar da experiência, ele é a experiência. Ele é
o sujeito da percepção. Quando meu braço é tocado, você me toca. Diferente de
quando toca meu computador. O corpo é quem tem as perspectivas da realidade. A
experiência corporal nos permite criar e recriar aquilo que pensamos, e a nossa
racionalidade traz novas experiências para este corpo. Não há antítese nesta
relação, mas complementariedade.
Assim, podemos pensar no parto sagrado como uma experiência,
individual e única, proporcionada por aquilo que acontece no corpo feminino. Já
que falamos no corpo feminino, uma forma possível de alcançar o sagrado nas
suas manifestações é percebendo que o corpo da mulher reflete fenômenos
macrocósmicos da Terra, da Mãe Terra.
Os cultos antigos às deusas estavam ligados de alguma forma aos elementos
da Natureza, ao cultivo da Terra. Foi a mulher quem primeiro aprendeu a
cultivar a terra, seu ciclo reprodutivo é o ciclo de vida e morte, o ciclo
lunar e reflete o funcionamento do cosmo. Mircea Eliade no seu livro “O Sagrado
e o Profano” reconhece que a experiência sagrada feminina: “é sempre uma experiência
religiosa profunda que está na base de todos os ritos e mistérios”. Ele diz
ainda que: “O mistério do parto,
quer dizer, a descoberta feita pela mulher de que ela é criadora no plano da
vida, constitui uma experiência religiosa intraduzível em termos da
experiência masculina”.
O
momento de um parto, quando mais uma pessoa está para se materializar e dar a
sua primeira tomada de ar, é um momento de profundos significados e símbolos. É
uma repetição da história evolutiva humana, no momento em que os primeiros
seres terrestres surgiram. É o momento em que a mulher está mais ligada à
Terra, por que está depondo o fruto da sua fertilidade, está vivendo no seu
corpo a vida e a morte. Está ligada ao cosmos, por que é o portal de entrada
para uma nova vida, para as infinitas possibilidades que é um bebê. A
sacralidade deste momento do parto é por nós intuída, então sentimos medo,
temor diante daquilo que é maior que nós.
Adelise Noal Monteiro, no seu texto “Gestação e
parto como símbolos”, coloca o seguinte
dilema: todo o aparato médico requisitado para o momento do parto é um ritual –
cheio de protocolos que não estão de acordo com as evidências científicas. O
mistério é deixado sob a responsabilidade dos sacerdotes, a equipe de saúde. Isso
tem várias conseqüências, dentre as quais destaco, para não sair do assunto, a
tomada do corpo feminino como um objeto do ato médico e a perda da autonomia da
mulher sobre seu próprio processo existencial naquele momento, já que
combinamos aqui que o corpo é o sujeito da experiência.
Por outro lado, a autora lembra que retirar o parto dessa aura
de mistério para vê-lo e vivenciá-lo como mais um evento
fisiológico que não pede nenhuma atenção, seria arrancar
deste momento a história ritualística que dedicamos ao parto e perder a sua
potencialidade como experiência sagrada. É este mistério que pode nos levar à
sacralidade.
Assim,
o papel dos “humanizadores” do parto é proporcionar os ambientes internos e
externos propícios para a experiência do sagrado. É criar, junto com todos os
envolvidos, outra significação, outros rituais. Também para que a mulher entre
em contato com seu corpo (ou consigo mesma), neste momento, de maneira
ritualística, como se entrasse em um templo, em uma igreja reconhecendo as
potencialidades espirituais desta experiência.
No
seu artigo “O Parto: Encontro com o Sagrado”, Adriana Tanese Nogueira discute a
sacralidade deste momento com base no depoimento de uma mulher que no último
mês de gestação mudou a história do seu parto. Gostaria de fechar essa reflexão
com um trecho da sua fala:
“No exato momento do nascimento
senti uma vibração, uma energia poderosa que preenchia tudo. Senti como se meu
corpo e meu ego se dissolvessem e tudo fosse um. Entrei em comunhão com o
universo. É impossível não estar absolutamente presente no momento do parto. As
sensações, a percepção, o corpo e a mente ficam totalmente focados, centrados
naquele instante, que por menor que seja, torna-se infinito.”
Bibliografia
Csordas,
T. 2008. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora UFRGS.
Eliade, M. 1992. O Sagrado e o Profano. São
Paulo: Martins Fontes.
Monteiro,
A.N. 2011. Gestação e Parto como símbolos. Acessado em 30/11/2011. http://www.amigasdopartogestantes.com/2011/01/gestacao-e-parto-como-simbolos.html
Nogueira,
A. T. 2006. O Parto: Encontro com o Sagrado. Texto Contexto Enferm. 15(1).
122-130.
Otto,
R. 2007. O Sagrado: os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação
com o racional. Petrópolis: Vozes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por participar!